segunda-feira, 3 de setembro de 2018

Inferno astral



Dizer que estou no meu inferno astral é um modo esotérico de dizer que logo será meu aniversário. É compactuar, mesmo que provisoriamente, com uma simbologia de renascimentos cíclicos. É estabelecer nesta linguagem mística que estou num período de reavaliação e autorreflexão intensa.

É afirmar, enfim, que a fossa é grande e o humor é de cão.

Nesse contexto infernal de dúvidas, veio-me à mente que talvez eu esteja vivendo de passado; e tão logo tal expressão surgiu entre os meus olhos me pareceu algo muito estranho de se dizer: viver no passado.

Afinal, enquanto estamos vivos, estamos. Presente. A cada segundo, a cada respiração, a cada fluxo de sangue bombeado, a cada pensamento, a cada sensação. Presente. Estamos sempre presentes em nós e a vida é um presente constante – como muitos livros de autoajuda já repetiram infindáveis vezes.

Sendo assim – pois tudo em que consiste nosso passado passou por nós; atravessou-nos; e agora é parte de nós – a ideia de viver no passado parece paradoxal.

É quase como a noção de tempo-espaço ou a teoria da relatividade, segundo a qual para dois observadores, um em repouso e outro em movimento, o mundo não é o mesmo. Melhor seria dizer que a percepção do mundo não é idêntica: enquanto para o que está em repouso o tempo é apenas um ponto de referência de quando algo acontece, juntamente com o local em que acontece; para o que está em movimento há uma mistura, uma amálgama de tempo e espaço.

Se o universo se expande, o tempo, ou a percepção de algo que denominamos assim, está relacionado ao movimento de criação de espaço.

E estamos sempre em movimento em nós. Eu ao menos estou. Em rebuliços mentais constantes. Reconstruindo pensamentos passados e reelaborando-os; reexperimentando sensações mentalmente. Eis o meu dilema.

Poderia exprimi-lo a partir de um fato mais palpável (e ligeiramente mais dramático do que conceitos de física) com o exemplo do tubarão, que morre se parar de nadar, pois seus movimentos na água são o que lhe possibilitam a respiração e consequente existência.

Só não tenho ainda um desenlace para a analogia. Não sei se é o constante ruminar que me paralisa ou se é a falta de uma rota definida para a minha vida que me sufoca. Detalhes.

O que quero dizer, em suma, é que estamos eternamente – enquanto duramos – a existir e participar infinitesimalmente do movimento da expansão do universo, da rotação da terra, da realocação das placas tectônicas, do processo de oxidação, das crises políticas, dos ciclos econômicos, de modas, dos dias da semana, das vaquinhas de aniversário. Da vida em todos os seus níveis.

Assim sendo, há um movimento que nos impele para fora. Para a vida que há além de nós. Porém, este movimento também ressoa dentro: ecos em nós provocados pelo impacto do mundo.

E eco por eco, tais quais as ondas de rádio que rumam para os confins do universo e se sobrepõem no infinito, eventos passados ainda ressoam latentemente em mim.

Existe outro jeito de viver sem ser este de estar atento aos rumores internos? Sei que tento fazer jus à máxima socrática de que uma vida sem autorreflexão não vale a pena ser vivida. Contudo, também sei que uma vida sobre a qual se reflete excessivamente é impossível de ser vivida em sentido pleno.

Se o passado se transforma reiteradamente no presente, enfim, podemos percebê-lo como polimentos sucessivos em nossos modos de ver, sentir, pensar e ser. E não como aquilo que devemos ver e sentir e pensar ou ser para sempre. Soa-me plausível.

E neste momento me dou conta: metáforas astronômicas abundantes em um texto sobre inferno astral. Que clichê.


domingo, 29 de março de 2015


Fui embora. De mala e cuia.
Mala grande e cuia pequena (para um matear solitário).
E lembro-me do livro mais depressivo da história: Receitas de micro-ondas para um.
Mala grande, mas minha vida toda cabe no porta-malas do carro.
É uma possível solução para minha angústia de deixar pedaços de mim espalhados por aí (o pai disse que me acostumo).
Mas, ah!, se a embreagem argola.
Daí da vontade de não guardar tanta lembrança. Nem as ruins, nem as boas.
Só é livre quem nada possui.
E homem é no fundo um ser caramujo.
O peso nas costas é duro, mas é a pressão que impõe que marca nossas pegadas no chão e explicita o caminho percorrido. Dando sentido (em todas suas acepções).
Talvez nem todo mundo tenha nascido para ser livre.
Talvez liberdade seja um sentido tão grande em si que não permite nenhum outro.

[21/02/2014]

quinta-feira, 12 de março de 2015


O universo tem um complô contra mim. Não posso usar saias.
É a história dos dias quentes e suadouros que terminam em ventania. Eu tentando carregar as sacolas da padaria, a carteira, o café (balouçante no copo de isopor) e ainda segurar a saia. De que jeito? Só se for me escorando nos muros e nas casas da rua.
Ou dias em que falta luz, e o portão eletrônico emperra, e não se pode entrar em casa sem fazer acrobacias (de saia) pra trepar – com o perdão da ambiguidade – nas grades e de lá pro muro e de lá pro chão. Com um saltinho esvoaçante.
Complô.
A meia-calça rasga.
A cachorrada resolve ser simpática.
O tempo se desfia em brisas repentinas.
E rio e rio sonoramente
Pra não encabular e envermelhecer
enquanto as nuvens se abrem e o sol espia
(como o vizinho entre cortinas)
Complô do universo

Pra botar sorrisos faceiros nos rostos dos rapazes.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Canção



No desequilíbrio dos mares,
as proas giram sozinhas...
Numa das naves que afundaram
é que certamente tu vinhas.

Eu te esperei todos os séculos
sem desespero e sem desgosto,
e morri de infinitas mortes
guardando sempre o mesmo rosto

Quando as ondas te carregaram
meu olhos, entre águas e areias,
cegaram como os das estátuas,
a tudo quanto existe alheias.

Minhas mãos pararam sobre o ar
e endureceram junto ao vento,
e perderam a cor que tinham
e a lembrança do movimento.

E o sorriso que eu te levava
desprendeu-se e caiu de mim:
e só talvez ele ainda viva
dentro destas águas sem fim.

Cecília Meireles

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Sempre que falo que não sou daqui – o que de fato não falo, mas todos adivinham pelo meu belo falar canto – perguntam-me de onde vim, onde moro, se estou me adaptando à cidade, se vim sozinha para cá.
Sim, estou me adaptando. Sim, vim pra cá sozinha; moro sozinha. Mas não há muito com que se adaptar. Estou sempre comigo, e me conheço há tanto tempo... Que qualquer coisa diferente ao redor sempre me parece familiar visto como sempre o é, através de mim.
Moro sozinha, mas não moro. Mas não apenas no sentido que minha avó daria: de que todos estamos sempre com Deus. (que presença despudorada, não? Adélia discordaria, mas fazer o quê?).
Embora more com algumas Marias, aparecidas placidamente em medalhas e fitas espalhadas pela casa. No encosto da cama, nas maçanetas, penduradas no relógio sem pilhas. Moro com os bons votos dos que me deram os retratos e pinturas e penduricalhos, com os quais moro.
Moro com as filhas da vizinha, que todo o sábado me acordam com choro seguido de risadas – ou risadas seguidas de choro (o que é mais comum).
Moro com a cachorra da dona do terreno e seus dois filhotes, que me vigiam enquanto estendo a roupa.
Moro com as mais diversificadas famílias de aranha. As atrevidas. Que aparecem enquanto tomo banho, escovo os dentes ou vejo filmes. Bem ao lado da minha cabeça, num canto quase fora do meu campo de visão, entre os livros que rearranjo ou atrás do pó de café. [Graças aos céus não moro com baratas, embora uma tenha visitado as gavetas da cozinha na semana passada].
Moro com minha rotina.
Com minha memória.
Com minhas xícaras de chá, anseios e romances russos.
Com meu pragmatismo e minha solidão. Moro com música.
Com os sapatos enfileirados, as cortinas emprestadas e a cadeira de balanço.

Moro comigo, que sou tanta coisa, que quase tenho certeza que nunca mais conseguirei abrir espaço pra mais ninguém. Moro comigo, que me basto. E mesmo se não bastasse, sou tudo o que posso ter. 

sábado, 10 de maio de 2014


Meus joelhos doem
São ferimentos de guerra
São ossos de velho, que rangem quando está para chover
ou mudar o vento
Quando me doem as lembranças no peito
Quando aquele pensamento pacificado explode no meio da mente
e entre meus olhos revejo cenas
e revivo vergonhas
Meus joelhos doem

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Litany against fear


I must not fear.
Fear is the mind-killer.
Fear is the little-death that brings total obliteration.
I will face my fear.
I will permit it to pass over me and through me.
And when it has gone past I will turn the inner eye to see its path.
Where the fear has gone there will be nothing.
Only I will remain.

Frank Herbert