domingo, 18 de setembro de 2011

Poema a quatro mãos


O futuro bateu na porta do meu coração
Você me diz para não o deixar entrar
Que ele não me merece
Que ele não existe
Mas se só existe a minha imaginação louca
Que desvirtua o mundo
E que me projeta sempre pra onde não estou
Que crie então personagens, você diz
Esquizofrênicos
Para além de mim
Que pertençam a esses mundos que teço
E o meu eu, clinicamente são
De âmago verdadeiro e inexpugnável
Que se dispense de tudo
E que te ame hoje
E só hoje
Porque senão, vira desespero
E ambos sabemos que somente aos soluços é que se dorme aí

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Ces russes sont fous...


Há alguns anos, B perguntou-me:
“Qual o romance russo da vez? Onde estão os lenços e chocolates?”
Sim, sim. Nem eu mesma me aguentava na época; drama demais até para uma personagem de Wagner. Virou referência obscura da nossa amizade.
Escrevo este texto para você, B. Quero dizer-lhe que achei o romance russo perfeito. Por certo que não é romance, é conto. Mas é mais russo do que vodka! (Que, aliás, suspeita-se até hoje ser uma invenção polonesa...).
Esses russos loucos, por isso os compreendo.
Não precisei de lenços. Chocolates iriam bem.

Imagem de Anna Kostenko

sábado, 2 de julho de 2011

Desculpem-me



Este é mais um poema triste.
Só na solidão mais absoluta
[que sinto na tristeza]
É que consigo escrever.
Só escrevo sobre decepção,
desculpem-me.
Só escrevo sobre chuva e frio.
E vazio.
A vida é suave assim, mesmo triste.
Sinto-me dona do que sinto.
Eu sei. Ao menos suponho.
Estamos como que na estaca zero.
Sei que é bonito ser alegre.
E não sei se precisaríamos ou deveríamos começar tudo de novo.
Perdão, mas palavras alegres não se formam nos meus lábios.
Não agora.
Não quando escrevo.
Se se formassem, eu perderia a alegria.
Estou confusa.
E sei que repetitiva, e chata, desculpem-me.
Desculpem-me.
Mas estou triste.
E não é culpa da chuva.
Nem do frio.
Nem do vazio, talvez.
Talvez a tristeza goste de mim.
E por vezes aprecio sua companhia.

Woody Allen's wisdom

"In short, the best thing to do is behave in a manner befitting one's age. If you are sixteen or under, try not to go bald. On the otherhand, if you are over eighty, it is extremely good form to shuffle down the street clutching a brown paperbag and muttering, "The Kaiser will steal my string." Remember, everything is relative-or should be. If it's not, we must begin again."

On youth and age. Without Feathers. Woody Allen

sábado, 5 de março de 2011

Gavetas




Sempre que estou pra começar algo novo, gosto de parar um momento e arrumar minhas gavetas.

Parar por um momento e organizar as coisas. Pôr cada pensamento, projeto, sentimento, no devido lugar. Jogar algumas coisas fora acaba sendo inevitável. Coisas emboloradas como aquele sabonete que a tia Fulana deu pra dar um cheirinho na gaveta (e agora já empestou o armário todo); coisas que você já tinha esquecido que estavam lá, como o par de meias furadas de lã que você não usa a uns dois invernos; ou até mesmo coisas das quais você não queria se desfazer, mas que não servem mais, estão muito gastas e você no fundo sabe que não pode mais depender delas.

Acredito que todo mundo tenha um hábito parecido, não importa se o chame de introspecção, meditação ou reflexão. Eu arrumo gavetas. Dependendo da intensidade dessa novidade que me impulsiona à ação, às vezes acabo tendo que arrumar as prateleiras, os cabides, o armário todo e, se acabo tirando os livros da estante pra reorganizar, então você pode suspeitar que tenha algo me incomodando muito mesmo.

O importante é revirar tudo. Remexer bem. Espalhar tudo pela escrivaninha, pela cama, pelo chão. Até cansar. Suar. E no final, olhar com orgulho e tranquilidade tudo limpo, perfeito, redondo.

Até o dia seguinte. Aí você vai escolher a roupa com que vai sair de casa e bagunça tudo de novo.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

No meio da noite

No meio desta noite, um choro convulso liberado pelas palavras de Adélia Prado

Acordei meu bem pra lhe contar meu sonho:
sem apoio de mesa ou jarro eram
as buganvílias brancas destacadas de um escuro.
Não fosforesciam, nem cheiravam, nem eram alvas.
Eram brancas no ramo, brancas de leite grosso.
No quarto escuro, a única visível coisa, o próprio ato de ver.
Como se sente o gosto da comida eu senti o que falavam:
"A ressurreição já está sendo urdida, os tubérculos
da alegria estão inchando úmidos, vão brotar sinos”.
Doía como um prazer
Vendo que eu não mentia ele falou:
as mulheres são complicadas. Homem é tão singelo.
Eu sou singelo. Fica singela também.
Respondi que queria ser singela e na mesma hora,
singela, singela, comecei a repetir singela.
A palavra destacou-se novíssima
como as buganvílias do sonho. Me atropelou.
— O que que foi? — ele disse.
— As buganvílias...
Como nenhum de nós podia ir mais além,
solucei alto e fui chorando, chorando,
até ficar singela e dormir de novo.

Adélia Prado