Sempre que
falo que não sou daqui – o que de fato não falo, mas todos adivinham pelo meu
belo falar canto – perguntam-me de onde vim, onde moro, se estou me adaptando à
cidade, se vim sozinha para cá.
Sim, estou
me adaptando. Sim, vim pra cá sozinha; moro sozinha. Mas não há muito com que
se adaptar. Estou sempre comigo, e me conheço há tanto tempo... Que qualquer
coisa diferente ao redor sempre me parece familiar visto como sempre o é,
através de mim.
Moro
sozinha, mas não moro. Mas não apenas no sentido que minha avó daria: de que
todos estamos sempre com Deus. (que presença despudorada, não? Adélia
discordaria, mas fazer o quê?).
Embora more
com algumas Marias, aparecidas placidamente em medalhas e fitas espalhadas pela
casa. No encosto da cama, nas maçanetas, penduradas no relógio sem pilhas. Moro
com os bons votos dos que me deram os retratos e pinturas e penduricalhos, com
os quais moro.
Moro com as
filhas da vizinha, que todo o sábado me acordam com choro seguido de risadas –
ou risadas seguidas de choro (o que é mais comum).
Moro com a
cachorra da dona do terreno e seus dois filhotes, que me vigiam enquanto
estendo a roupa.
Moro com as
mais diversificadas famílias de aranha. As atrevidas. Que aparecem enquanto
tomo banho, escovo os dentes ou vejo filmes. Bem ao lado da minha cabeça, num
canto quase fora do meu campo de visão, entre os livros que rearranjo ou atrás
do pó de café. [Graças aos céus não moro com baratas, embora uma tenha visitado
as gavetas da cozinha na semana passada].
Moro com
minha rotina.
Com minha memória.
Com minhas xícaras de chá, anseios e romances russos.
Com meu pragmatismo e minha solidão. Moro com música.
Com os sapatos enfileirados, as cortinas emprestadas e a cadeira de balanço.
Moro
comigo, que sou tanta coisa, que quase tenho certeza que nunca mais conseguirei
abrir espaço pra mais ninguém. Moro comigo, que me basto. E mesmo se não
bastasse, sou tudo o que posso ter.