sexta-feira, 13 de junho de 2014

Sempre que falo que não sou daqui – o que de fato não falo, mas todos adivinham pelo meu belo falar canto – perguntam-me de onde vim, onde moro, se estou me adaptando à cidade, se vim sozinha para cá.
Sim, estou me adaptando. Sim, vim pra cá sozinha; moro sozinha. Mas não há muito com que se adaptar. Estou sempre comigo, e me conheço há tanto tempo... Que qualquer coisa diferente ao redor sempre me parece familiar visto como sempre o é, através de mim.
Moro sozinha, mas não moro. Mas não apenas no sentido que minha avó daria: de que todos estamos sempre com Deus. (que presença despudorada, não? Adélia discordaria, mas fazer o quê?).
Embora more com algumas Marias, aparecidas placidamente em medalhas e fitas espalhadas pela casa. No encosto da cama, nas maçanetas, penduradas no relógio sem pilhas. Moro com os bons votos dos que me deram os retratos e pinturas e penduricalhos, com os quais moro.
Moro com as filhas da vizinha, que todo o sábado me acordam com choro seguido de risadas – ou risadas seguidas de choro (o que é mais comum).
Moro com a cachorra da dona do terreno e seus dois filhotes, que me vigiam enquanto estendo a roupa.
Moro com as mais diversificadas famílias de aranha. As atrevidas. Que aparecem enquanto tomo banho, escovo os dentes ou vejo filmes. Bem ao lado da minha cabeça, num canto quase fora do meu campo de visão, entre os livros que rearranjo ou atrás do pó de café. [Graças aos céus não moro com baratas, embora uma tenha visitado as gavetas da cozinha na semana passada].
Moro com minha rotina.
Com minha memória.
Com minhas xícaras de chá, anseios e romances russos.
Com meu pragmatismo e minha solidão. Moro com música.
Com os sapatos enfileirados, as cortinas emprestadas e a cadeira de balanço.

Moro comigo, que sou tanta coisa, que quase tenho certeza que nunca mais conseguirei abrir espaço pra mais ninguém. Moro comigo, que me basto. E mesmo se não bastasse, sou tudo o que posso ter.