Dizer que estou no meu
inferno astral é um modo esotérico de dizer que logo será meu aniversário. É
compactuar, mesmo que provisoriamente, com uma simbologia de renascimentos
cíclicos. É estabelecer nesta linguagem mística que estou num período de
reavaliação e autorreflexão intensa.
É afirmar, enfim, que a
fossa é grande e o humor é de cão.
Nesse contexto infernal
de dúvidas, veio-me à mente que talvez eu esteja vivendo de passado; e tão
logo tal expressão surgiu entre os meus olhos me pareceu algo muito estranho de
se dizer: viver no passado.
Afinal, enquanto
estamos vivos, estamos. Presente. A cada segundo, a cada respiração, a cada fluxo
de sangue bombeado, a cada pensamento, a cada sensação. Presente. Estamos
sempre presentes em nós e a vida é um presente constante – como muitos livros de
autoajuda já repetiram infindáveis vezes.
Sendo assim – pois tudo
em que consiste nosso passado passou por nós; atravessou-nos; e agora é parte
de nós – a ideia de viver no passado parece paradoxal.
É quase como a noção de
tempo-espaço ou a teoria da relatividade, segundo a qual para dois observadores,
um em repouso e outro em movimento, o mundo não é o mesmo. Melhor seria dizer
que a percepção do mundo não é idêntica: enquanto para o que está em repouso o
tempo é apenas um ponto de referência de quando algo acontece, juntamente com o
local em que acontece; para o que está em movimento há uma mistura, uma
amálgama de tempo e espaço.
Se o universo se
expande, o tempo, ou a percepção de algo que denominamos assim, está relacionado
ao movimento de criação de espaço.
E estamos sempre em
movimento em nós. Eu ao menos estou. Em rebuliços mentais constantes. Reconstruindo
pensamentos passados e reelaborando-os; reexperimentando sensações mentalmente.
Eis o meu dilema.
Poderia exprimi-lo a
partir de um fato mais palpável (e ligeiramente mais dramático do que conceitos
de física) com o exemplo do tubarão, que morre se parar de nadar, pois seus
movimentos na água são o que lhe possibilitam a respiração e consequente existência.
Só não tenho ainda um desenlace
para a analogia. Não sei se é o constante ruminar que me paralisa ou se é a
falta de uma rota definida para a minha vida que me sufoca. Detalhes.
O que quero dizer, em suma,
é que estamos eternamente – enquanto duramos – a existir e participar
infinitesimalmente do movimento da expansão do universo, da rotação da terra, da
realocação das placas tectônicas, do processo de oxidação, das crises
políticas, dos ciclos econômicos, de modas, dos dias da semana, das vaquinhas
de aniversário. Da vida em todos os seus níveis.
Assim sendo, há um
movimento que nos impele para fora. Para a vida que há além de nós. Porém, este
movimento também ressoa dentro: ecos em nós provocados pelo impacto do mundo.
E eco por eco, tais quais
as ondas de rádio que rumam para os confins do universo e se sobrepõem no infinito,
eventos passados ainda ressoam latentemente em mim.
Existe outro jeito de
viver sem ser este de estar atento aos rumores internos? Sei que tento fazer jus
à máxima socrática de que uma vida sem autorreflexão não vale a pena ser
vivida. Contudo, também sei que uma vida sobre a qual se reflete excessivamente
é impossível de ser vivida em sentido pleno.
Se o passado se
transforma reiteradamente no presente, enfim, podemos percebê-lo como polimentos
sucessivos em nossos modos de ver, sentir, pensar e ser. E não como aquilo que devemos
ver e sentir e pensar ou ser para sempre. Soa-me plausível.
E neste momento me dou
conta: metáforas astronômicas abundantes em um texto sobre
inferno astral. Que clichê.